Saturday, August 8, 2015

Molhando os pés na água

Em março de 2000, mesmo tendo ido e estar morando na mesma casa de Zumel, parei de vê-lo. Ele arranou uma namorada e praticamente se mudou pra casa dela. Não fiquei nem sabendo quando ele voltou pro Brasil. Eu sei que eu voltei no fim de março, quando a primavera chegava com seu esplendor nas ruas de Montréal. Justiça seja feita, Montréal é uma das cidades que se dá muito bem com a primavera.

Com o pessoal do francês e Rosel, grande amigo que fiz por lá, fui conhecer a famosa celebração de Saint Patrick. Cervejas com coloração verde e muita animação. Foi com isso na cabeça que deixei Montréal, doido para voltar e ficar lá de vez. O Brasil havia perdido completamente a graça pra mim. Morar lá era uma coisa que não passava pela minha cabeça. Hipotese zero. Montréal havia me conquistado com suas cores, cheiros, charme, inverno, primavera, grandiosidade e uma certeza que eu tinha que conhecia aquele lugar não sei de onde.

Nas noites em que eu passava na casa do Padre Pierre, eu tinha disponível no meu quarto um rádio-relógio-despertador. Eu me sentava na escrivaninha e ia fazer, apagar e refazer os exercicios de francês, o estudo do passé composé, e toda essa onda. Um belo dia, resolvi ligar o bendito rádio. Estava sintonizado numa estação AM. Quando liguei, tocava uma música chamada Get Together, dos Youngbloods. Caramba, chega deu arrepio agora. Voltei ao inverno de 2000. Bem, se eu disser que me lembro o nome da rádio, estarei mentindo. Só sei que outras músicas vieram e eu gostei de todas. Peguei um durex e colei no seletor pra não mudarem a rádio, algum desavisado. E essa rádio passou a ser minha companheira. Dormia e acordava com ela.

Na casa do Padre Pierre tinha de tudo e do melhor. Foi um presente de Deus. Íamos às missas no Oratório St-Joseph aos domingos, pois o Padre Pierre trabalhava lá. Fomos no cume da Igreja, o que é proibído, mas como ele tinha a chave, tivemos acesso. A visão lá de cima é a mais bonita da cidade. Fomos também conhecer Ottawa e uma fazenda da Igreja Católica, onde? Nao tenho a menor ideia. Mas foi com direito à lareira, vinho e tira-gosto à noite toda. Aqueles religiosos sabem viver.

Existia um bar chamado Les Bobards, onde acho, até hoje tocam música brasileira aos domingos, na Avenida St-Laurent. No meu último finao de semana em Montréal, depois de uma festa na casa de um brasileiro no Plateau, fui com um cara chamado Celso Mirres e um peruano chamado Lúcio, para o Les Bobards. Lá jogamos sinuca e bebemos muito. Os caras pagaram. Eu já estava liso. E conversando, comentei com Celso dos meus planos de voltar à Montréal para fazer o mestrado. Ele disse conseguir emprego pra mim e que eu poderia ficar na casa dele até me organizar. Nao botei fé, mas mesmo assim guardei o e-mail dele.

Fui ao Brasil me formar, peguei o diploma e precisamente no dia 5 de setembro de 2000, eu voltava pra Montréal. Escrevi pra Celso nesse interim, ele manteve a palavra. Avisei quando chegava, ele disse: “Ok, Paraíba, te pego no aeroporto”. E lá estava ele no dia 6 de setembro quando cheguei, numa manhã congelante, no aeroporto Pierre Eliott Trudeau International Airport, em Montréal, que na época era chamado de Montreal-Dorval Airport International Airport.

Portava roupas de trabalho e disse, “Paraíba, tu não disse que queria trabalhar? Vamos trabalhar!”. Dali, partiu pra Ville de St-Laurent onde ficava a fábrica Edicilble, que ele trabalhava como operador de máquinas. Minha função seria de faz-tudo.

Era uma gráfica gigante, basicamente. Tinhamos que montar caixas, empacotar panfletos, retirar pacotes de livros quando prontos, ou seja, um trabalho bem intelectual. O tempo simplesmente não passava e como eu não tinha permissão para trabalhar, eu o fazia de forma ilegal. Para isso acontecer, eu trabalhava pra uma agencia de um árabe, muito simpático. Ganhava 5 dólares por hora e ainda descontavam o almoço, ou seja, ganhava 37 dólares e 50 centavos por dia. Multiplicado por cinco, dava 187.50 por semana, 750 dólares por mês. Eu tinha que sair dali. Esse dinheiro dava enquanto eu morava de favor na casa de Celso, mas eu queria ir pro meu lugar. Estava ficando desesperado, até que ocorreu um fato que apressou essa minha decisão.

No auge do meu cansaço, vi uma pilha de livros na minha frente. O cerebro ordenou para que eu fosse pegar e colocar em uma caixa. Quando eu estiquei os dois braços pra pegar a pilha de livros, ouvi um grito, como o amigo índio que avisou Kid Morengueira do perigo, e recolhi minhas maos instintivamente. Senti ainda o vento da guilhotina que desceu para aparar as arestas dessa pilha de livros. Naquele momento, entendi que meu muito enriquecedor período de trabalho ali tinha chegado ao fim.

Mas antes disso, logo que cheguei, uns dois dias depois, um pessoal amigo de Celso havia ganho um sorteio num bar chamado La cage aux sports. Eram quatro tickets, que davam direito à uma viagem de Montréal à Hamilton, Ontário, no trem, junto com o time de futebol de Montreal, Les Alouettes. Pegamos o trem na Gare Centrale, junto com o time, e fomos no vinho até o destino final, sete horas depois. Chegando lá uma grande festa, ganhamos o jogo e apareci até na televisão apertando a mão de um dos jogadores. Momentos alegres que antecederam momentos de muito trabalho e seriedade.