Wednesday, November 30, 2016

Vivenciando o lugar – 14

A escola de francês da Université de Montréal era muito legal. Tínhamos aula o dia inteiro por 3 meses. Zumel ficou um nível acima do meu. Eu concluí os níveis 1 e 2 em três meses e fiz grande amizades, principalmente com os latino americanos, como não poderia deixar de ser. Idiomas parecidos servem como válvulas de fuga do silêncio total. Se quer dar fim a um tagarela, basta colocar o mesmo no Cazaquistão. Em três dias ele se mata.

Teve um dia que fomos sair com a galera do francês ainda no começo do curso, pra nos conhecermos melhor, sugestão da professora, para podermos praticar o pouco que sabíamos. A tarefa era usar o francês, mas foi uma salada de idiomas, até árabe.

O encontro foi em uma pizzaria na Côte-des-neiges chamada Pizzadelic. Bem, fomos Dona Flor, eu e Zumel. Dona Flor era o apelido de uma nota de 20 dólares que estávamos dividindo. Pedimos duas doses de vodka, uma seven up e duas fatias de pizza, uma pra cada um. Com as taxas, a conta deu 19 dólares e pouco. Quando recebi o troco ficamos boquiabertos. Resolvemos que o lugar de liso era em casa e assim foi o resto do curso, praticamente. E o garçom, chateado, esperando a gorjeta, que por lá é Pourboire.

O mexicano Manuel Ávila e o colombiano César Gomez foram os que ficaram mais próximos, ambos do mesmo nível que eu. Pessoas muito boas. Nas últimas duas semanas, eu recebi uma grana extra do meu velho e pude sair mais de casa. No começo eu só ficava em casa, comendo e vendo televisão com os padres. Usando a Internet quando não tinha ninguém em casa e resolvendo exercícios dos livros do curso de francês. Fazia, apagava e fazia de novo. Fiz mais de 20 vezes cada. Quer que um cara tenha disciplina nos estudos e fique fera? Deixe ele trancado, liso, dentro de um quarto, sem nenhum eletrônico. Quando ele cansar de dormir e de fazer o que se faz sozinho, ele não vai ter outra alternativa senão estudar, até mesmo para passar a praga do tempo.

Manuel era um cara supertranquilo, gostava de fumar uma maconha e ficava o tempo todo rindo. Fotografo talentoso, era casado com uma canadense de Vancouver e já moravam em um apartamento deles. Fui lá tomar várias Molson Dry e praticar inglês com o casal. Escutavamos muita música e ele me contava histórias de Carlos Santana. Sua esposa era uma simpatia também, bebia cerveja com a gente e fazia tira-gostos.

Na casa de Manuel, em Verdun, tomei meu primeiro grande porre em Montreal. Saí de lá perto da hora do metrô fechar e não sei até hoje como consegui fazer a baldeação da linha verde pra linha azul e sair da estação e chegar na casa dos padres. Acordei no outro dia depois do almoço, sem saber onde estava. Longe da minha casa eu já estava, mas perdido sem me situar na casa dos outros, foi uma sensação estranha demais. Como se fosse o perdido dos perdidos. Dois níveis de perdição.

Cesar tambem um cara fantastico, colombiano com cidadania americana, falava inglês fluente e trabalhava com computadores. Tinha um amigo com quem dividia o apartamento chamado Alex. Fui na casa dele tomar uma grande, depois fomos pro Winston Churchill, na Crescent e voltamos pra terminar a cana por lá. Foi o segundo porre. Acordei lá também sem nem saber onde estava. Ressaca braba, tomando Canadian Whiskey. Os dois sabiam que o dólar americano valia mais do que o real e eles tinham bastante, fui convidado da noite.

No dia seguinte, no café da manhã por lá e Alex estava colocando ovo no prato. Cesar disse: |Enough! Eu entendi que significava chega. Pedi pra ele escrever a palavra num papel. É assim que se aprende.

Wednesday, November 23, 2016

Achando lugar – 13

Já íamos nos despedindo, agradecendo ao Claude pela grande força, e também pela gratuidade do esforço, eis que num momento cinematográfico, Zumel se vira pra ele e diz:
  • E os nossos 100 que já pagamos, ele vai nos devolver né?”
Rapaz, o Claude nem respondeu, fechou a porta e deu um bom dia. Ligamos pra Natan e o intimamos de ir também, pra fazer número, uma vez que o filipino andava com mais 4, seriam 5 contra 3. Natan concordou, mas foi se tremendo todo. Eu combinei com Zumel, se der merda, a gente joga alguma coisa em cima desses putos e corre o máximo que puder até a casa de Natan.

Natan berrou logo, “Lá em casa não, lá em casa não, vão pro Metrô, se Júlia ficar sabendo, ela me mataaaaaaa…”. Canalha.

Mas uma vez chegando lá, o filipino tomou a chave das minhas mãos, e já foi mostrar pra outro inquilino. Nem falou nada. Ou seja, era tudo jogo de cena. O tal do se colar, colou. Bandidão.

Aparecida foi de grande valia, assim como Natan e Ieda nesse nosso começo em Montréal. Foi através de Aparecida que conhecemos o Padre Pierre Labine. Ele também era aluno de português de Aparecida. E por coincidência, era o padre do Oratório St-Joseph, aquele que tinha me maravilhado na chegada em Montréal.

O padre Pierre tinha uma casa em que alugava quartos por 300 dólares por mês, incluindo ai alimentação de boa qualidade. Pela maior parte dos 3 meses que ficamos por lá, só moravam eu, Zumel, o padre Pierre e o irmão Michel. E em quartos individuais. No final, foi que chegou uns africanos, mas aí já dominávamos o ambiente.

Isso foi uma bênção em todos os sentidos. O padre nos ajudou e muito. Inclusive nos levou pra passear em Ottawa e Cornwall e nos hospedamos numa fazenda da Igreja num feriado prolongado. Ali eu conheci de maneira direta o inverno canadense.

Saindo da casa, um frio seco e cortante, neve pra todos os lados, afinal lá não se passava o Snow Plower. Dentro da casa, uma lareira queimando a madeira da região, gerando um cheiro característico que onde eu estiver, eu ainda lembrarei daquele cheiro, mesmo com 100 anos de idade.

Abrimos um bom vinho, sentamos próximo a janela de vidro grande, apreciando a paisagem branca, aquecidos pela lareira natural. Se tivesse uma paz maior do que aquela, eu nunca tinha vivido. Parecia que ali as almas descansavam de verdade. Além de tudo isso, teve a experiencia de viajar pela primeira vez em rodovias cobertas de neve. Também uma outra experiencia fantástica. O padre gostava somente de música clássica. Deslizávamos na branca areia, ao som de Vivaldi, Bethoven, Mozart, Bach.

O padre Pierre também nos dava carona pra Université de Montréal todas as manhãs, ali na Avenida Decelles, uma vez que ele ia pro Oratório de toda forma. A casa onde morávamos era situada ali naquele região entre as estacões de metrô De Castelnau e Jean-Talon. Era na rua Faillon, esquina com a St-Denis. A noite tinha um carteado, eu e Zuma contra padre Pierre e Irmão Michel. No meio de uma tossida, Zuma dizia passa um 8 de copas. Os adversários iam à loucura, as vezes abandonavam o jogo. Não entendiam, mas achavam que estávamos combinando. E estávamos.

Wednesday, November 16, 2016

Encrenca – 12

Foi então que, perto da casa de Natan (esse era o apelido dele), apareceu um apartamento vago, 4 et demi, como se diz em Montréal, e lá fomos ver. O dono era um mafioso filipino, que só andava com uns 4 seguranças. Depois de vermos o apartamento, e constatarmos que o bicho era todo fudido, resolvemos alugar aquela joça. Demos 100 dólares de depósito e Natan foi o fiador do aluguel. Resolvemos aceitar por pura falta de opção. A japonesa iria voltar pro apartamento da Décarie e não tínhamos como pagar hotel. Mas...

Saindo de lá, compramos uma cerveja e fomos beber na casa de Natan. Não sei porque, me deu um negócio, uns arrepios premonitórios e resolvi não ir mais pra aquele lugar. Estava com um mal presságio. Como sempre confiei nos meus instintos (ou quando não confiei me dei mal), me levantei do sofá e disse em alto e bom som, de supetão: “Não vou morar ali naquele apartamento”.

O que? Como?”, foram os gritos de Zuma e Natan. “Não pode!”, berrou Natan. “Eu fui o fiador, ele vai vir atrás de mim, vai ficar ligando, oh meu Deus, porque você fez isso comigo?”. Como se tivesse em transe, confirmei, naquela merda daquele apartamento eu não entraria nem a pau.

Eu estar falando aquilo era uma coisa tão surpreendente pra mim quanto era para os dois. Não sei de onde, não sei porque, mas eu estava decidido a não descansar meus ossos naquele ambiente.

Liguei logo pro velho Jajá a cobrar via Embratel e expliquei o meu problema. Ele sem entender nada, disse que eu fizesse o que era melhor. E ficou uns dólares mais leve somente com essa frase. Zumel só fazia rir do desespero do baiano, nem ligava pro resultado da história, acanalhado que sempre foi.

Então o baiano Natan, em meio a pinotes histéricos, ligou pra uma professora de português da UQAM chamada Aparecida, uma mineira que morava em Montréal desde a sua fundação.

Ele queria conselhos. Isso era Natan ao telefone, ipsis letteris:

- “Sim mulher… Eles assinaram, mulher... Foi... E eu fui o fiador... Sim... Era um quatre et demi… Muito bonzinho… Foi... Aí o menorzinho (nota: ele estava se referindo a mim) implicou que não quer ir mais, mulher... Não sei porque ele assinou... Mas agora não quer ir mais... Ai meu Deussssss! Júlia vai me matar quando ficar sabendo disso…”

Nota do autor: não confundir essa Júlia do parágrafo acima, que é estudante de mestrado com a Júlia da outra página, que era promotora de eventos. São duas pessoas distintas.

Mas voltando ao papo de Natan ao telefone. Cara, pensei em mandar aquele bicho se lascar. Mas ao mesmo tempo, ele era o nosso único contato com a realidade. Aparecida então lembrou que tinha um aluno dela do curso de português que era defensor público e disse que fossemos lá ter com o indivíduo na manhã seguinte que ele iria nos ajudar. Em menos de uma semana no Canadá já estávamos com problemas jurídicos.

O nome do defensor público era Claude e no dia seguinte ele nos recebeu. Contamos tudo a ele e ele pediu o telefone do sujeito. Ligou e foi uma discussão braba, até que o Claude o ameaçou, dizendo saber de coisas dele e mandou deixar a gente livre dessa. Então o filipino marcou um encontro para que nós pudéssemos devolver as chaves do imóvel.

Wednesday, November 9, 2016

Desespero – 11

Chegamos de volta ao hotel e arrumando minha mala, encontrei um papel que eu havia imprimido com os telefones de alguns brasileiros que moravam em Montréal, que encontrei numa busca simples no pré-histórico site “cade.com.br”, colocando as palavras chaves: “brasileiros em Montreal”.

Lá tinha os números de telefone de cinco pessoas. Como também deleguei a tarefa de ligar para essa lista para Zumel, o canalha ainda conseguiu fazer uma merda. Tinha o telefone de uma senhora chamada Júlia, e dizia ao lado que ela era promotora de eventos e o telefone de outra senhora chamada Gilda, que dizia que ela era jornalista. Zumel pegou o telefone de Júlia, pensando ser o de Gilda. E ligou e perguntou por Gilda, em português mesmo. Júlia disse que o nome dela era Júlia e não Gilda. Ai Zumel atacou com uma de suas manias imbecis:

Júlia? Ah, eu pensei que fosse Gilda. Bem Júlia, tem nada não, serve tu mesmo. Como só tem tu, serve tu mesmo, hehehe…”. Aí ato continuo, dá uma paradinha, coloca a mão tapando o telefone, olha pra mim e dá uma risadinha de rapariga. Como eu não ri, ele retornou ao papo. “O negócio é o seguinte. Somos estudantes, lisos, estamos em um hotel e o dinheiro já tá acabando. Será que tu não conhece nenhuma residência estudantil onde a gente possa se hospedar por três meses?”

Já fuzilou a mulher com esse problemão, logo no primeiro dia do ano de 2000. Ela, muito educada, disse que conhecia um cara de Salvador que poderia nos ajudar, mas que naqueles primeiros dias do ano, nada funcionava em Montréal. Puta merda, nem nisso havíamos pensado. Só pensamos em pegar o voo mais barato do bug do milênio e mais nada.

Mas o nome do cara que Júlia conhecia era Maurício e estava buscando um mestrado em Direito Ambiental, na universidade McGill. Ela nos deu o telefone desse sujeito. Zumel ligou e quem atendeu foi um cara chamado Natanael Bonfim, professor da Universidade Estadual da Bahia, que estava cursando um doutorado na universidade UQAM.

Só sei que quando Zumel desligou, foi logo dizendo que havíamos sido convidados pra jantar na casa desse Natanael. Ora, de graça eu iria até na de Papai Noel, quem dirá Natanael. As coisas pareciam estar clareando. Natanael era roommate de Maurício, e ainda tinha uma moça que por lá habitava, também baiana, chamada Júlia, estudante de algum mestrado ai desses da vida.

Ficamos conhecendo o figura e este logo ligou pra outra baiana chamada Ieda Muniz, para que esta pudesse nos dar uma luz. Ieda morava no prédio de propriedade de um senhor quebecois chamado André Boulais, situado no Boulevard Décarie, em NDG, quase na esquina com a Sherbrooke. Para nossa sorte, tinha uma japonesa que morava vizinho ao apartamento de Ieda, que iria viajar por 10 dias e estava disposta a nos alugar o apartamento dela por esse período pelo valor de 120 dólares.

Ora, o preço dos dez dias era o mesmo preço de UM dia do hotel. Foi ela fechar a boca e já estávamos lá com toda nossa parafernália. Foi bom pois dessa forma teríamos tempo pra procurar outro apartamento, pois todos os apartamentos de André Boulais estavam ocupados. Foi uma felicidade adentrar naquele ambiente, sabendo que estávamos pagando 12 dólares por dia, 6 pra cada um.

Seguindo indicação de Ieda, fomos logo a um depanneur que tinha lá perto, de uma chinesa, e fizemos umas comprinhas básicas pra sobrevivência. Evidentemente, deixando claro o que era meu e o que era de Zumel, pois o homem comia até pedra e a comida que o próprio escolhia nem cachorro chegava perto.