Wednesday, February 22, 2017

Boulevard Décarie, 3433 – 19

O apartamento que peguei era de Iêda, aquela que tinha nos ajudado quase um ano antes. Ela estava indo morar em Verdun, em um apartamento que Mario Morin e Lu, que é de Natal também, alugavam, com dois quartos, uma espaçosa sala e uma espaçosa cozinha. Fiquei nesse apartamento de André Boulais por dois anos, até 2002, quando minha irmã resolveu ir pro Canadá e eu precisava de dois quartos.

Dali saí pro meu primeiro dia no prédio do Ministério do Trabalho do Québec. A estação mais perto da minha casa era Vendôme, linha laranja e ia até Sauvé, quase no final do outro lado, da mesma linha laranja. Deu tudo certo lá, o salário era 1600 dólares por mês, trabalhando apenas 5 horas por dia. A fábrica era 800 dólares, trabalhando 8 horas por dia, sem liberdade de ir nem no banheiro. Pense numa evolução. Estava me sentindo rico. Pagava o aluguel, morava só e ainda sobrava 1235 dólares pra comer e beber.

Pra completar, Rosel tinha mais dois empregos. Um num edifício chamado Chabanel e outro num banco da Caisse Populaire Desjardins, na mesma rua onde morávamos. Um pagava 800 dólares por mês e outro pagava 400 dólares. Rosel me propôs dividir com ele esses dois prédios também, mas só durou 2 meses e ele ficou sozinho de novo. Mas por 2 meses eu ganhei 2400 dólares por mês. Dava certo demais, pois o mestrado ainda não havia começado.

Como nada pode ser floreado, vamos à segunda grande merda em Montréal. A primeira foi a dos filipinos. Celso passa no prédio num domingo e chama pra tomar uma cerveja e jogar sinuca num lugar que ele gostava. Vamos simbora Rosel? Ele disse vamos, ninguém ganha pra mim na sinuca. E ninguém ganhou mesmo, o fela da puta é muito bom na sinuca. Mas o fato não foi esse. Foram muitas partidas e muitas cervejas. Contra todos que estavam lá. Eu com dinheiro, Rosel com dinheiro e Celso com dinheiro. Foi uma farra.

Celso tinha um Honda Civic Hatch preto, como eu já devo ter dito. Na hora da saída, vimos Celso bêbado, como nós estavamos também. Dissemos a ele que iríamos de metrô e dali ele fosse pra casa dele. Ele insistiu em nos deixar em casa, foi quase uma briga. “Não, moço, nós vamos de metrô”, dizia Rosel. Depois de tanta insistencia, fomos com Celso. Ele pegou a Highway e lá fomos nós, felizes nos 120km/h e tal. E Celso rindo e conversando. Eu vi que havia chegado ao fim pois tinha um semáforo e os carros estavam parados. E eu vendo que estávamos nos aproximando dos carros parados e nada de Celso diminuir. Quando não tinha mais jeito, eu gritei, “Fela da puta, os carros estão parados!!!”. Ele meteu os pés no freio, travou os pneus, mas não teve jeito. O Honda entrou todo, fiquei com os joelhos nos peitos. O casal da frente num Chevrolet Cavalier saiu do carro sem saber o que estava acontecendo. Destruiu os dois carros.

Não tardou muito, chegou a polícia. Perguntou quem era o motorista, Celso se identificou. Ele chamou Celso num canto e o outro policial veio nos entrevistar. Perguntou se ele tinha bebido, eu disse que não tinha visto. Perguntou o mesmo a Rosel e Rosel disse o mesmo. Perguntou se nós tínhamos bebido, eu disse que sim e Rosel também, mas que isso não tinha relevância porque estavamos de carona. Ele disse não importa, andem aí nessa linha. A linha branca que tinha no meio da estrada.

Eu andei bem certinho, mas quando foi a vez de Rosel andar, parecia Charles Chaplin, desequilibrado, quase caindo. Eu caí na gargalhada, o que irritou profundamente o policial. Ele disse, “Tá vendo ali aquele sinal? Vocês dois vão embora, peguem o metrô e vão pras suas casas. O amigo de vocês vai ficar aqui, ele vai com o carro do guincho”. E assim fizemos.

Wednesday, February 8, 2017

Primeira mudança – 18

Pra completar, nos dias que tinha pouco trabalho, eu não era escalado e ficava em casa. Ligava pra Rosel, o bom baiano de Anajé e íamos bater papo e circular pela cidade, batendo fotos e tomando uma cerveja aqui e outra acolá. Numa dessas, ele perguntou como estava na fábrica. Ele tinha trauma da fábrica, pois o local não tem aquecimento e nem ar-condicionado e numa dessas coisas da vida, Rosel um sujeito “delgado”, como os hispanos o chamavam, pegou uma pneumonia e quase que ia dessa pra melhor.

Eu disse que a fábrica era uma merda e pior ainda era o salário. Ele disse então que iria falar com seu patrão, um outro peruano, chamado Luiz Moralez. Este senhor, o Moralez, era um ex-policial fugido por problemas com outros policiais corruptos, segundo ele. Pediu refúgio no Canadá, colocou uma empresa terceirada de serviços e Rosel arranjou emprego com ele. Ele pegava os contratos dele com um grego chamado George. Luiz andava numa Hilux cabine única, toda fudida e em umas vans mais fudidas ainda. O grego andava num Porshe e só andava de jaqueta de couro. Luiz então prometeu a Rosel que iria ver o que arranjava pra mim.

Nesse meio tempo, eu gastava meus dias indo pra fábrica das 8 às 4 da tarde e quando chegava, ainda ia juntar papelada pra dar entrada no processo de aplicação do mestrado. Traduções, certificações, cartas de recomendação, e todo o lereado. Foi um tempo pauleira. E pegue cerveja. Não estava juntando quase nada. Gastando quase todo nesse processo e nas bebedeiras. Ia morto pra fábrica no dia seguinte.

Foi então que quase simultaneamente, dois fatos mudaram o curso do meu caminho. Rosel ligou pra casa de Celso e deixou uma mensagem na secretária eletrônica dizendo que um cara que trabalhava pra Luiz no prédio do Ministério do Trabalho do Quebec estava saindo de férias, se eu queria substituí-lo e conforme fosse, Luiz me daria um sub-contrato ou coisa assim. Fiquei de dar a resposta à noite. Mas no meio do expediente da fábrica, eu vinha distraído pra pegar uma pilha de livros em uma mesa, quando um hispano grita e me empurra. Ato contínuo, a guilhotina que era uma máquina desce. Não sei direito o que eu ia perder, provavelmente os dedos todos ou as maos.

Fiquei em estado de choque o resto do dia. Nesse dia, o árabe filho da puta veio me pagar, rindo. Eu pensei esse viado tá rindo de que? Liguei pra Rosel e deixei uma mensagem na secretária eletrônica dele. Nunca mais coloquei os pés na fábrica. O ultimo pagamento o árabe entregou pra Celso, que me passou depois. Nesse mesmo dia, puto da vida, fui pra casa de metrô pois Celso havia saído mais cedo. Chegando lá, já estava um frio grande, e eu estava com muita fome. Vi a luz do quarto acesa. Toquei na campainha e nada de Celso abrir. Depois de uns 15 minutos, ele sai dizendo que eu esperasse no metrô pois ele estava com uma jovem lá dentro e que depois ele me chamava lá. Esperei mais ou menos uma hora e decidi ali, vou me mudar.

No dia seguinte já não fui pra fábrica confiando que ia dar certo com Luiz Morales. Fui ate o prédio de Rosel, no Boulevard Decarie, 3433, perto da Sherbrook. Lá encontrei com André Boulais, o proprietário e ele me disse que o apartamento 01 estava vagando. Fechei o contrato com ele ali mesmo. O aluguel, lembro até hoje, era 365 dólares mensais, com energia e água inclusos. Eu pagaria por fora somente telefone e lavanderia, essa com 4 moedas de 25 centavos, no basement do prédio. A internet era gratuita com uma empresa terrível chamada Net Zero, que fornecia internet gratuita mas que a todo momento ficavam aparecendo telas de anúncios. Dentro do apartamento já tinha uma TV de 14 polegadas, cama, sofá, cadeiras e material de cozinha completo. Ah, e uma varanda que dava pra Decarie. O código de entrada do apartamento era #1945, ano de nascimento de André. Celso me ajudou a levar as coisas e ali tinha meu primeiro lar.

Wednesday, February 1, 2017

O retorno – 17

Então ele me deixou na casa dele e rumou pra fábrica. Fiquei ali o dia inteiro tentando dormir e sem conseguir direito. Era muita coisa que tinha pra organizar até começar a relaxar meus ossos. Fui dar uma volta nas ruas do bairro naquela tarde de setembro. Ficava pensando no meu pai que não quis ir no aeroporto. Um sentimento de culpa de deixar pra trás aquele que nunca havia me deixado. Mas era meu destino, eu tinha que aceitar.

Fui pra estação Rosemont, peguei um metrô e circulei sem ter pra onde ir. Na volta, desci na estação Beaubien. Andei de volta, já era perto das 17 horas. Celso chegou ao mesmo tempo que eu. E veio com uma novidade. Era feriado do dia do trabalho e ele disse que iriamos viajar com o time de futebol americano de Montréal, os Alouettes. Ele havia ganho um sorteio no restaurante La Cage Aux Sports, que dava direito à irmos para um jogo dos Alouettes contra os Tiger Cats, de Hamilton, na província de Ontário. Iriamos no mesmo trem que o time. E lá fomos nós no dia seguinte.

Rumamos pra La Gare Centrale de Montréal muito cedo. Deixamos o carro lá e já fomos tomando um vinho. Depois passamos pra cerveja e quando chegamos em Hamilton, sete horas depois, ninguém sabia mais nem onde era o céu e o chão. A música alta nos intervalos, tocando rock, e a Budweiser rolando solta no estádio, me fez pensar que seria vida mansa o tempo todo. Fui com a camisa da seleção brasileira e quando o jogador principal dos Alouettes estava sendo entrevistado pela TV após a vitória sobre o Tiger Cats, eu apareci no campo visual dele e ele me chamou!! Acabei aparecendo também! Voltamos com o time, já relaxados, vieram de um em um agradecer a cada passageiro pela torcida e por terem perdido tempo de ir até lá. Isso é o Canadá. Chegamos tarde da noite, rumamos pra casa, afinal, no outro dia, começaria o trabalho na famigerada fábrica.

Acordamos cedo para preparar o almoço pra levar pra fábrica. O sistema era bruto. A fabrica se chamava Edicible, de uns judeus e não era verdadeiramente uma fábrica. Era uma enorme gráfica, do tamanho de um quarteirão. Basicamente, eles imprimiam livros, revistas, panfletos e qualquer coisa que se colocasse em papel. E lá mesmo cortavam, e montavam os livros e tudo o mais. Muitas máquinas impressoras, muitas guilhotinas e muita separação.

Cheguei um pouco antes das oito horas da manhã e Celso me levou pra falar com um árabe. Vejam só, o dono da fábrica era judeu e quem arrumava a força laboral era um árabe, que tinha uma agência de emprego. Um exemplo como o dinheiro une esses povos tão raivosos uns dos outros. Ele me disse que meu salário seria 5 dólares por hora, mas que seria descontado a hora do almoço, assim, minha diária seria de 37.50 dólares, das 8 da manhã até as 4 da tarde. Fiz minhas contas, daria 750 dólares por mês. Não era muito, mas naquela época, dava pra se virar em Montréal com o básico.

Comecei o trabalho separando panfletos em montes e colocando uma liga. Depois fui montar umas caixas. Depois carregar uns livros. Fiz coisa pra cacete e quando olhei no relógio da fábrica, ainda era 8:45. O relógio parecia estar em slow motion. Finalmente deu 4 horas e Celso me disse que iria ter que ficar de plantão. Pediu a um grupo pra me deixar no metrô e fui pra casa. Não sabia se ria ou se chorava. Quando peguei no sono, chega Celso e Lúcio, aquele peruano, com uma caixa de cerveja. Puta que pariu, pensei, o rojão aqui é pesado. Logo chegam dois caras novos do trabalho e começam a tocar na guitarra de Celso e cantar, basicamente Red Hot Chili Peppers. E fui trabalhar morto no outro dia.

Basicamente, isso se repeteria pelas próximas três semanas. Quando chegava o sábado e o domingo, sempre íamos pra casa de um brasileiro ou recebíamos brasileiros na casa de Celso, e pegue mais cerveja. Pouco dormia ou descansava. Emagreci horrores, com pena de gastar dinheiro com comida.