Wednesday, September 28, 2016

Liso, leso e louco – 6

Eu possuo uma teoria hoje em dia, mas naquele tempo não havia formulado ainda. Ela consiste no preceito de que quando você tem dinheiro no banco de sobra, você está protegido contra os desprazeres da vida, como um pneu furar, o carro quebrar, uma batida, até mesmo a ter uma unha encravada.

Por outro lado, se uma pessoa estiver com pouco dinheiro, tudo acontece pra varrer este minguado numerário pra longe de você. Ou pior, caso você não tenha nenhum, a desgraça é maior ainda, pois terás que viver endividado e com dores. O que ocorreu foi que pra nós, o visto tinha que ser encravado em algum pedaço de pau lá pelo consulado canadense, ao invés de sair de maneira suave. Pediram uma entrevista e queriam nos ver pessoalmente em São Paulo. Puta que pariu, mais duas diárias de hotel na terra da garoa somadas no nosso orçamento, pro total desespero do velho Jajá.

Combinei de pagar uma diária e Zumel ficou de pagar outra. O nosso amigo Doido Kiko, que hoje atende pelo nome de Magno e é um alto bichão da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro, tinha um amigo chamado Ramon, que por sua vez tinha uma agência de viagem e nos conseguiu um preço camarada. Custava 80 reais cada diária, me lembro até hoje, no hotel Othon, no centro de São Paulo. Só pra se ter uma ideia, a minha bolsa do CNPq era de 240 reais por mês (O salário mínimo da época). Três diárias e eu gastaria minha bolsa inteira.

Sem pensar nisso, pegamos o nosso avião da Fly, uma companhia aérea que desapareceu da mesma forma como apareceu, voando. Pegamos é uma forma de dizer, pois eu cheguei atrasado e Zumel ficou praticamente segurando a porta do avião com uma mão e com a outra mão segurando o braço da aeromoça, para que me esperassem. Ou ele estava com medo de ir sozinho ou gostava muito de mim. Como não acredito nessa ultima razão, acho que o puto estava se cagando de medo de ir sozinho.

O detalhe era que esse avião mais parecia um onibus daquele que fazia a linha Natal-Patu. Só faltavam as aves (galinha, papagaio, canário, etc), mas o resto era igual. Tinha um sertanejo, vestido e paramentado de sertanejo mesmo, com toda a indumentária que você veria num filme de Lampião, com a mala retangular de couro surrado meio das pernas e estava do meu lado, dando a impressão que era um conhecido meu. Ele estava com tanto medo de voar que se segurava na cadeira de forma tão agressiva que quando se levantou quase que leva junto com ele o assento. Zumel, com aquela cara de Mister Bean dele, disse pra mim, olhando bem no rosto do senhor: É, cachorrão, o nordestino é antes de tudo um forte.

O senhor começou a fazer perguntas e eu batendo um agradável papo com ele e Zumel. No fim das contas, o papo que eu bati com ele fez com que a viagem fosse mais rápida. Ele estava começando um negócio de ir à São Paulo comprar camisas pra vender no nordeste. Alem de forte, era um empreendedor, Zumel deveria acrescentar na sua frase. O voo foi tranquilo e chegamos em São Paulo sem maiores problemas.

O amigo de Kiko nos deu um panfleto com o nome de uma empresa de onibus que fazia o trajeto aeroporto de Guarulhos-hoteis. Disse que só era procurar esse onibus, colocar as malas dentro e pagar acho que 9 reais, que o motorista iria fazer um tour pelos hotéis. Quando a gente visse o nosso, pediríamos pra descer. O negócio foi que aquele era um papo furado. O onibus foi até uma tal de Praça da República e por lá parou. Incrédulos, começamos a observar o motorista esvaziar o compartimento de bagagens, inclusive as nossas quatro malas. E já estava escurecendo. Descemos correndo do onibus e fomos ter com o filho da puta do motorista, que nos disse, sorrindo, que era bom a gente desaparecer logo dali pois aquela praça era cheia de ladroes e muito perigosa.

Wednesday, September 21, 2016

Esquina que muda tudo – 5

Eu comecei contando como desisti da vida academica. Vou contar como fui parar tão longe pra descobrir isso. De repente, chega Miguel com uns folders e panfletos, de uma universidade no Canadá, chamada HEC (École des Hautes Études Commerciales), onde existia lá um sujeito chamado Allain Joly, que tinha feito doutorado com ele na Getúlio Vargas, em São Paulo e esse indivíduo estava chamando Miguel pra ir fazer o seu pós-doutorado por lá. Meu amigo Gustavo Zumel estava na sala comigo e eu disse: “Se fosse eu, ia na hora!!”. Zumel disse que iria também. Miguel então disse: “Usted tiene coraje miesmo?”. Nós reafirmamos e ele então disse que iria arranjar tudo e talvez até uma bolsa.

Zumel ficou tão empolgado quanto eu e saímos em busca das nossas famílias pra comunicar tal fato. Com os papeis em mãos, corri pra casa pra mostrar pro meu pai. O velho Jajá olhou, olhou novamente, passou a mão nos poucos cabelos, no sentido testa-nuca, olhou por sobre os óculos e largou a clássica pergunta: “Tu vai com que dinheiro mesmo?”

Pronto, era esse o meu maior medo: a falta de fundos. Eu enchi o peito e com a coragem única dos loucos varridos, dei um tapinha nas costas dele, que ainda segurava os papéis e me olhava de baixo pra cima, por entre os óculos e então eu disse, sem falhas e com a entonação de um canalha que está prestes a vender o Pão de Açúcar pra um turista: “Ora, com o único que sempre usei até hoje, o bom e infalível SEU!!!”

Eu não esperava, mas ele deu uma gargalhada, daquelas que só se dá quando alguém escuta uma coisa realmente engraçada. Depois dos 10 minutos rindo e segurando os órgãos internos com as duas mãos sob a barriga, ele perguntou se eu estava ficando esclerosado, pois devia ser sabedor da precária situação financeira que ele se encontrava naquele momento. Mas eu disse que a gente ia dar um jeito, apesar de não ter a mínima ideia qual era a forma ou a cor desse jeito.

O plano era primeiro dominar o idioma de Charles Aznavour e só depois, aplicar pro mestrado em si. Vi então um alívio no seu rosto. “Então você vai estudar francês aqui na Aliança Francesa antes de ir”, perguntou meu velho. Eu falei não, esse francês aí é diferente, temos que estudar francês na própria universidade onde vamos aplicar e por coincidência, essa faculdade fica também no Canadá. Ele disse que podia desistir da ideia, pois não tinha a mais remota condição disso acontecer, a não ser que eu o ajudasse a assaltar uma agência de banco. Fomos dormir, e eu fiquei bastante desapontado, mas entendia a sua situação.

Quando acordamos, ele tinha mudado de ideia e disse que uma oportunidade dessas não pode ser desperdiçada e assegurou-me que arranjaria a grana, de uma forma ou de outra. O que fez esse homem mudar de idéia nunca ficarei sabendo. Ele levou com ele. O meu trabalho seria fazer o levantamento de todos os custos da viagem, desde o chiclete que ia mascar no avião até o copo de água congelado que eu não ia conseguir tomar no Canadá.

Nesse aspecto, Zumel estava na minha frente. Tinha um Jeep Engesa bastante cobiçado pela nata jipeira do Rio Grande do Norte e o colocou à venda, recebendo boa grana pelo automóvel. Então saímos em busca do que precisávamos pra obter o visto, papeis, cartas, passaporte e valores de tudo. Chegamos perto do dia 22 de Dezembro com quase tudo arranjado. Foi aí que veio o problema: o visto. Somente o visto. Um adesivo ridículo, com sua foto e seus dados pessoais, colados no seu passaporte, que já possui seus dados pessoais, mas que sem ele, você é persona non-grata no país que você pretende ir, se este país não possuir acordo com o seu país de origem que dispense o visto.

Wednesday, September 14, 2016

Reviravolta – 4

Na busca de uma ideia pra esse trabalho a ser apresentado no Congresso, fui conversar com vários professores. Um deles era um americano que lecionava na Universidade, chamado Wayne Thomas Enders, que acabou sendo meu orientador da monografia pois Miguel precisou se ausentar do Brasil pra fazer seu estágio pós-doutoral.

Fui encontrar com ele, que como todo americano, era objetivo e me sugeriu um tema de trabalho interessantíssimo, baseado em uma ideia de um amigo dele chamado Peter Dakowski. A ideia existia, eu teria que me aprofundar e estruturar aquilo como trabalho acadêmico. Fui atrás, fiz os levantamentos que precisava, embora o referencial teórico era de difícil equalização.

A ideia consistia no seguinte. Como Natal era o ponto mais próximo da Europa e mais próxima dos Estados Unidos do que os portos do sudeste brasileiro, Natal seria o pólo receptador dos carros importados. A ideia era aproveitar as carretas de carros que sairiam de Natal com os carros importados para abastecer o sudeste e usar essas mesmas carretas para trazer para o nordeste os carros fabricados no sudeste. Na época, as carretas que vinham com os carros fabricados no nordeste voltavam pra São Paulo vazias, onerando bastante o custo desse transporte.

Evidentemente, sabíamos da dificuldade política disso acontecer, mas para um trabalho acadêmico, me pareceu perfeito, até porque tinha muitos aspectos práticos e não somente os devaneios teóricos que tanto me davam náusea.

A data do congresso chegou e eu não tinha nada organizado ainda teoricamente, tudo que tinha era a ideia em uma folha de papel. Tudo bem, pois teria apenas que apresentar o trabalho oralmente. A apresentação tinha que ser simples, para uma banca de professores e alunos na plateia. Acredito que não gastei nem 15 minutos explicando a ideia, em compensação, passei uns 45 minutos respondendo perguntas. Uma pergunta gerava outra e por sorte, todas as perguntas que foram feitas, eu tinha as respostas.

Saí de lá arrasado. Fui massacrado, pensei. Fui pra cantina e descansei, após um fuzilamento de tantas perguntas. Bem, vida que seguiu. Passaram-se algumas semanas, e continuei indo pra base de pesquisas de Miguel todos os dias. Um belo dia, chega Miguel com aquele sorriso dele, segurando um negócio em um das mãos, com o sotaque boliviano dele, dizendo: “Ganhamos, rapaz, ganhamos!!!”.

Eu, genuinamente, não tinha a menor ideia sobre o que ele estava falando e perguntei, “ganhamos o que, homem de Deus?”. Ele finalmente explicou, após alguns momentos de suspense. Havia sido o prêmio de melhor apresentação oral do congresso na minha categoria, que eu havia ganho, o que me dava um troféu, que ele segurava em sua mão, balançando, feliz, e uma passagem para ir pra Brasília, defender o trabalho completo.

Minha primeira pergunta foi: “Ninguém nunca ganhou esse troféu aqui na sua base, hein? Pois agora saiba que tem um troféu aqui, carajo!!!”. Acredito que esse prêmio foi o que faltava pra cimentar de vez minha ida pro mestrado. Eu mostrei ali, mesmo sem saber, que estava mesmo disposto a seguir aquele caminho. Penso que ganhei o respeito de Miguel de vez naquele momento.

O ano era 1999 e nesse ano, como prova total do meu foco, decidi não participar do carnaval fora de época da minha cidade. Havia participado de todos, desde sua criação. E nunca mais participei de nenhum depois disso. Aí sim, meu pai acreditou que eu realmente estava falando sério.