Monday, February 5, 2018

Um dia qualquer

Eu saí pela porta da cozinha, que vivia sempre aberta e fui na área de serviço. Lá estava Solange, nossa empregada, irmã de Baíca do América, filha de Mira, lavadeira e Tico, jardineiro, que só tinha uma perna. Peguei um copo, enchi de água no filtro de barro, com uma torneirinha e Solange reclamou que já havia lavado o copo. Dei de ombros e perguntei: “E daí? Ninguém mais vai beber água nesse copo só porque você lavou?”. Ela me chamou de malcriado, mas riu.

Encostada no muro estava minha bicicleta, uma Caloi Cruiser azul. Subi na magrela e pedalei até o portão, que com um golpe certeiro, fazia o mesmo se abrir. Saí e com uma mão, já fechava de volta o portão, num gesto tão repetido que se tornou mecânico. Desci a rua, era só pegar à direita em cima da própria calçada. Como era uma ladeira, já pulei “a rampa” pra calçada de Serejo. Parei no 1472 e gritei por Bebeto. Uma voz lá de dentro, da copa, gritou: “Ele está estudando”, era Dona Terezinha, sempre na esperança que Bebeto fosse gente.

Decidi continuar meu trajeto sozinho. Quebrei pro outro lado da Brigadeiro, lá estava rolando uma partida de dominó, apostando coca-cola e pingo de ouro. Pedro com uma ruma de revista de cinco anos de existência nas prateleiras, somente pra dizer que aquilo era uma cigarreira e não ser expulso dali. Na partida estavam Toinho Fofoqueiro, Cadinho, Janilson e Mariano.

Esperavam de baia, Miro Carioca, Hélio Barra-boa e Seu Heleno. Pedi a próxima. Pedro disse que eu tinha que pagar cinco pingos de ouro atrasados. Falei que papai tinha mandado recado que iria pagar hoje, ele acreditou. Mas não gostei da cobrança do sujeito e fui embora, sob protestos dos jogadores.

Continuei descendo a rua, até a Clementino de Farias, onde dobrei à direita, sem antes não esquecer de tocar na campainha da casa de Espigão, pai de Marco coça-cu. Quando eu toquei e virei a rua, ele estava no outro portão, brabo mais do que a porra. Tive que pular a calçada e ir pra rua, depressa, senão levava uma bordoada.

Parei na casa do ilustre Bob Motta e por cima do portão chamei por Pezão. Ele mandou entrar. Cheguei na sala estava lá o belo, com uma camisa de Ricardo Motta deputado estadual, vendo tv e limpando cêra do ouvido com o fecho écler da almofada do sofá. Ele com uma e Bico com outra. Quem não sabia não entendia o que eles fazias com a almofada colada no ouvido. Nem água saiu ali e fui embora.

Dobrei a esquina e fui em direção à casa de seu Praxedes. Queria mesmo ir na casa do doido Kiko. Vilhelme estava chegando em casa, agoniado. Chegando lá, estavam de papo na calçada, Kiko, Ismael dos relógios, o nêgo Luisinho e Tolête, mais conhecido como Cuíca, com a sua motoca de apelido independência.

Como ali todo mundo era muito sabido, não me demorei e segui na Tarcísio Galvão em direção à Lagoa dos Jacarés. Antes de chegar na Brigadeiro, escutei um apito mandando eu parar. Era Seu Djesum, controlando o trânsito do cruzamento, para evitar acidentes. Perguntei sobre a guerra, ele me disse estar com a dispensa cheia, nunca se sabe quanto tempo a guerra vai durar!!

Subi a rua e entrei na Abelardo Calafange. Derrubei o lixo da casa de Cagumelo, sem querer, com a perna esticada. Ele estava saindo pelo portão, ficou puto da vida, e ainda quis correr atrás de mim, mas eu já estava longe. Aproveitei a subi a rua em direção à casa de Rodrigo Escóssia. Parei em Medeiros, onde meu pai tinha conta.

Enjoado como sempre, Medeiros não permitia ninguém sem camisa no seu estabelecimento. Enquanto eu tomava um refrigerante, chega Miro Carioca, que se cansou de esperar,sua vez no Dominó. Estava no seu Baby Vermelho e decide comprar algumas coisas em Medeiros. Assisto a cena, Medeiros expulsando Miro de lá e Miro gritando, chamando Medeiros de “Manja rola”.

Decidi sair de lá, pois Miro estava perguntando minha opinião e eu não queria confusão. Passei ali por Navega, ele todo ensacado e voltei pela rua do Chefão. Encontrei com Chibatão, sempre passeando por ali, passei por Junior Cavalo e me deparo com Carlinho Maldiçao sentado na calçada, juntamente com Juninho de Guia, Rodela e Juruna tocando uma viola. Comi duas coxinhas em Dona Nesinha, terminei no mesmo momento que chegava Teté e Alex.

Saí, passei em Borginha e perguntei por Alberto, que tava me devendo o dinheiro de um periquito australiano que vendi a ele. Fui lá por cima e entro na rua de Canindé Frutuoso e lá vinha Buana Jones andando com a farda da ETFRN. Ele e Alf. Sigo até o morro e me deparo com o grande astro de Morro Branco, Josimaikel, tocando Belchior naquela hora.

Enrolo a rua e quem eu vejo? Pastel, pedindo pra eu mudar a nota dele do boletim na impressora de papai, senão a surra dele ia ser grande. E dizendo e rindo: “Não uso camisa branca e cinto de segurança, não sou bacalhau!!!”.

Decido visitar Bolo e quando chego por lá, A fera Apolo estava solta. Hesito, mas Bolo, que consertava uma prancha de surf e construía uma tábua de morro ao mesmo tempo, prende Apolo. Piolho chega na conversa com duas lagartixas com o bucho aberto por ele.

Pouco antes de voltar pra casa, encontro na esquina uma reunião de gênios. Ronaldo Tesourão, Júlio, Zápata e Davi, numa conversa animada, sobre xadrez. Júlio não falava muito. Quando volto pra descer a ladeira, quase sou atropelado por Terêncio, Marcelo Mamão e Paulo Grêmio, cada qual numa moto de cross.

Chego em casa à tempo de abrir o portão pra papai que chegava do trabalho. Avistei Zé, Pentelho de Urubu e De Assis nas calçadas. Papai desligou o carro, e como sempre veio me dar um beijo. Cheiro de cigarro, barba que arranhava, mas um abraço e um sorriso sem iguais.

Entro em casa, Fábio assiste a um episódio de Chips, dizendo Ëu sou Ponchirelo, vocé é John”. Fernanda no colo de Mamãe, que diz seu leite com chocolate e hamburguer estão prontos. Copão verde da Tupperware, que tinha uma tampinha pra beber.

Um barulho chato, insistente e quando me dou conta, é um smartphone berrando no meu ouvido. Um frio da moléstia na cama e a pressa de tomar banho e correr, com a certeza de que talvez eu tenha tido a infância e adolescência mais feliz do mundo.

Fabiano Holanda, Charleston, 5 de fevereiro de 2018.

Wednesday, April 19, 2017

Coisas acontecem rápido - 22

Um belo dia, estava eu em casa e Luciano bate na porta. Disse que estava retornando ao Brasil. Eu não entendi nada. Somente depois de um mês é que fiquei sabendo por terceiros que ele estava casando e com Lucianna grávida.

O ano de 2002 entrou e eu estava mais acomodado no mestrado e continuando trabalhando com Miguel e Olga na Soleil Net. Em setembro, minha irmã chegou no Canadá e me mudei pra casa de Morin e Lu, no segundo andar, da rua Ethel, na cidade de Verdun. Comecei a colocá-la em determinados trabalhos com Olga também e assim ela foi ficando capaz de pagar as próprias contas e pra sanidade mental dela e minha, resolveu se mudar e foi morar na casa do lado com Tiago e Flávia. A casa também era de Morin e eles moravam no andar de baixo.

No andar de cima moravam meus amigos Otávio e Mônica, com sua filhinha Maíra, então com 4 anos de idade. Otávio, professor da Univerdade Federal do Pará, fazia ali um curso de doutorado na Universidade UQAM. Foi meu companheiro de cachaça e de música todos os finais de semana. E Maíra era meu xodó, coloquei-a pra andar de bicicleta e carregava-a pra todos os lados. Ela estudava numa escola em francês, perto da Igreja de Verdun.

O trio Marcelo, Augusto e Maurício foram embora pra Flórida, pra onde tinha uma prima de Augusto por lá. 2003 chegou e nada mudou até chegar março e eu, como concluinte do mestrado, tinha direito de fazer estágio em alguma empresa. Foi aí que ocorreu um problema de entendimento.

Eu havia aplicado pra trabalhar numa grande empresa de consultoria chamada Mckinsey. Mas também tinha aplicado pra trabalhar em mais de duzentas empresas, inclusive uma gigante do setor de logística de medicamentos chamada McKesson. Só que a primeira era pra uma posiçao de consultoria, a segunda era pra uma posição mais baixa.

Recebi um telefonema da empresa e o cara falou McKesson, mas eu entendi Mckinsey. Pensei porra, fui chamado pra McKinsey, esse mestrado é forte mesmo. Ele me deu o endereço onde eu deveria me apresentar. Comprei roupa nova, sapato, e fui pro endereço fornecido.

Chegando lá, vi um grande galpão. Uma senhora na recepção perguntou meu nome e já tinha um crachá. Pensei, porra, que legal. Mandou eu seguir por um corredor, onde fui parado por um sujeito com um jaleco. Onde estão suas botas de segurança?, perguntou o sujeito. Que botas?, perguntei eu. Ele disse: “Como você quer trabalhar numa fábrica sem botas de segurança?”. Fábrica? Pensei eu. Do que esse cara tá falando?

Ele então me entregou um negócio duro pra calçar sobre os sapatos e pediu pra eu seguí-lo, dizendo, ríspido, compre botas pra trazer amanhã. Foi quando eu fui andando e vendo o nome nas paredes Mckesson e não McKinsey. E eu todo arrumado. Mas não desisti, fui até o fim. Encontrei outros estudantes da mesma universidade todos sentados numa sala de reunião. Passamos por um briefing sobre a empresa e me levaram pro meu posto.

O trabalho consistia em pegar um carrinho cheio de remédios e dali escanear cada item. Na scanner de mão, dizia o que eu deveria fazer com ele. Se fosse vencido, colocava em uma prateleira tal. Se fosse violado, colocaria em outra. E por ai ía. Uma dificuldade tão grande que até um macaco bem treinado consegueria realizar tal tarefa. O meu chefe, não tinha um dente sequer na boca. Fiquei impressionado como um sujeito daquele, num país daqueles, não tinha dente.

Wednesday, March 29, 2017

Ataque as Torres Gêmeas - 21

Fiquei no Brasil até setembro de 2001, marcando minha passagem pro dia 11 de setembro de 2001, coincidentemente. Íriamos viajar à noite, eu e Luciano Berberick e fomos na agência STB, do meu amigo Maninho, buscar as passagens. Chegamos lá e estávamos esperando as passagens, que custavam 700 dólares na época, pra quem era estudante, quando vimos na televisão um prédio em Nova York pegando fogo.

Ninguém ali imaginava se tratar de um ataque terrorista, e sim de um acidente aéreo. Maninho então ligou pra tentar alguma informação com a Continental Airlines, foi quando foi informado que o espaço aéreo americano estava fechado. Resultado, só pudemos embarcar no dia 13 de setembro. Fizemos escala em Newark, New Jersey, uma das sedes de Continental e rumamos pra Montréal. Sobrevoamos Manhattan e ainda muita fumaça saía do lugar aonde eram as Torres Gêmeas.

Voltei às aulas do mestrado, e continuei fazendo um trabalho aqui e outro acolá pra me manter e toda noite eu dava uma surra de xadrez em Luciano. Entao o mesmo recebeu a visita da então namorada Lucianna. Inclusive tomamos uma cana de vodka na sexta-feira a noite, pesada. O resto da turma chegaria no sábado cedo: os primos Augusto e Maurício Benfica e Marcelo Toscano. Combinamos de pegá-los no aeroporto. Eu não acordei. Luciano, sem falar uma palavra de inglês ou francês, foi sozinho pegar um táxi e deixou Lucianna com a incubência de bater no meu apartamento até eu acordar e irmos ao encontro dele no aeroporto.

Lucianna que falava inglês, explicou ao taxista que era pra ir pro aeroporto, mas disse que Luciano já imitava as asas de um avião com os braços e fazia o barulho do motor pra ver se o taxista entendia que era aeroporto. Mas a volta de lá seria uma incognita. Depois de muito tempo, Lucianna conseguiu me acordar. Tomei um banho rápido e fomos pegar um onibus pra ir pro aeroporto. Pegamos o onibus errado. Depois pegamos o certo. Mas quando chegamos lá, já tinham ido embora.

Como Luciano fez? Comprou um mapa no aeroporto e uma caneta e circulou o endereço no mapa e apontou pro motorista. O taxista entendeu e lá se foram. Chegaram lá, a gente ainda devia estar indo. Mas deu certo, eles foram morar um tempo na casa de Danielle, esposa de Zumel, no bairro judeu de Outremont.

Lá, através dela, conheceram Dona Eva, uma brasileira que tinha um Pet Shop e era casada com um quebecois chamado Raymond. Por sua vez, Dona Eva conhecia uma senhora chamada Lena, que conhecia Olga, que tinha uma empresa de Limpeza também. Olga é uma portuguesa irmã de Miguel e os dois eram donos da empresa Soleil Net. Miguel anos depois casou com Flávia, prima de Maninho da agência que nos vendeu a passagem. Flavia continua casada com Miguel e tem duas meninas lindas e um rapaz mais novo. Miguel conheceu Flávia através da gente que fomos trabalhar com ele.

Augusto foi trabalhar a noite toda no Hotel de la Montagne e ainda fazia a boate Thursdays. Mauricio ficou fazendo trabalhos esporádicos e Marcelo só estudava. Eu peguei dois contratos: Chapters a noite e Archambault de manhã cedo. E isso me ajudou a custear minha vida por lá, inclusive o mestrado. Logo logo tinha juntado 20 mil dólares. Trabalhava também nos finais de semana.

O trio se mudou pra um apartamento também em Outremont e economizavam o máximo. Só não havia economia de cerveja. Tomavamos muitas. Mas carne era só moída. Carne inteira era cara demais. Lembro de Maurício dizendo certa feita: “Rapaz, faz tempo que não mastigo uma carne sem ser moída, estou com medo de não saber mais”.

Wednesday, March 1, 2017

Acabava 2000 – 20

Já estava frio e abrimos o gás, correndo, não sei porque. Cheguei lá em cima da ladeira morto, bufando, e vimos uma loja do KFC. Entramos e pedimos um combo do Super Croque, como se dizia no Québec. Ninguém parava de rir, bêbado é foda. Só fomos ter notícias de Celso no outro dia.

A rotina voltou ao normal, muito trabalho, recebi a grande notícia da aprovação do mestrado na prestigiosa HEC Montréal, chegou o Natal de 2000 e deu aquele banzo. Fui pra casa de Morin e Lu. Cana vai, cana vem, começamos uma discussão, eu e Rosel, sobre direita e esquerda. Ele falando sobre a esquerda, colocou o dedo na minha cara, em riste. Eu avisei: “Amigo, fale o que você quiser, mas não coloque o dedo na minha cara!”. Ele foi falando empolgado, e outra vez colocou o dedo na minha cara, gritando. Avisei de novo, amigo, fale mas não bote o dedo na minha cara. A terceira vez você vai se arrepender. Ele aprendeu ali naquele momento como as coisas funcionavam comigo. Ele colocou o dedo pela terceira vez na minha cara, e antes dele poder ter qualquer reação, eu dei uma mordida tão forte no dedo dele, que ele queria tirar o dedo da minha boca e não conseguia.

O sangue escorria e eu não soltava. Todo mundo entrou em pânico, querendo que eu soltasse, me empurrando, puxando e eu agarrado. Mas o engraçado foi que em vez dele ficar puto, teve um acesso de riso. Pulava de um lado pro outro, dizendo com o sotaque baiano, “Lá ele, o potiguar é pitbull, o potiguar é pitbull, qual o quê?”.

Voltamos a beber novamente quando fizeram um curativo, mas por precaução, pediram pra gente evitar o assunto política. Todos estavam assustados demais. Pegamos um ônibus pra casa, bebemos mais umas cervejas que tínhamos lá e fomos direto pro Chabanel pro trabalho. O frio era tão intenso naquele primeiro dia de 2001 que usávamos máscaras de ski para proteger o rosto, senão queimava. Era terrível, com neve acumulada da noite anterior que batia na canela. Do metrô pro prédio, eu pensei que fosse morrer. Fizemos o trabalho e só assim que voltamos pra casa pra dormir.

Logo no começo de janeiro começaram as aulas do mestrado. Se eu pensava que estava preparado, tive a certeza que não estava. O francês falado academicamente era muito mais puxado do que o falado nas ruas e nas escolas de idioma. Me vi doido. Nesse tempo, eu tinha somente o trabalho de Luiz, do Ministério do Trabalho do Québec, que começava as 5 da tarde e ia até umas 10 da noite, às vezes um pouco mais. Chegava de lá, ia estudar ou fazer algum trabalho (que toda semana tinha um pra cada matéria) até umas 2 ou 3 da madrugada, pra acordar cedo no outro dia pra começar as aulas às 9 da manhã. Mas ainda tinha onibus, metrô e parte à pé, então tinha que sair de casa no máximo as 8 da manhã.

No primeiro trimestre, fiz logo uma disciplina com Alain Joly e como Miguel Anez fazia pós doutorado, aproveitou e fez essa disciplina comigo. Era gestão comparada e estudava formas de gestão em diferentes países. A universidade era linda, desde a arquitetura até a biblioteca, passando pelas salas de aula, auditórios, lanchonete, corredores, escritórios dos professores. Tudo era incrível, um tempo de muita esperança e alegria, apesar de eu achar que aquele clube não era pra mim.

Acabou o trimestre de inverno, como eles chamam e o trimestre de verão era opcional. Como eu tinha que ter tempo pra dormir um pouco e tempo pra juntar o dinheiro da mensalidade, eu decidi voltar somente no trimestre de outono. Trabalhei em Luiz até o meio do ano, quando ele alegou que queriam minha permissão de trabalho e eu não tinha e tive que sair. Aproveitei pra ir no Brasil em agosto de 2001, pois meu pai estava com dinheiro da aposentadoria e resolveu me presentear com uma passagem.

Wednesday, February 22, 2017

Boulevard Décarie, 3433 – 19

O apartamento que peguei era de Iêda, aquela que tinha nos ajudado quase um ano antes. Ela estava indo morar em Verdun, em um apartamento que Mario Morin e Lu, que é de Natal também, alugavam, com dois quartos, uma espaçosa sala e uma espaçosa cozinha. Fiquei nesse apartamento de André Boulais por dois anos, até 2002, quando minha irmã resolveu ir pro Canadá e eu precisava de dois quartos.

Dali saí pro meu primeiro dia no prédio do Ministério do Trabalho do Québec. A estação mais perto da minha casa era Vendôme, linha laranja e ia até Sauvé, quase no final do outro lado, da mesma linha laranja. Deu tudo certo lá, o salário era 1600 dólares por mês, trabalhando apenas 5 horas por dia. A fábrica era 800 dólares, trabalhando 8 horas por dia, sem liberdade de ir nem no banheiro. Pense numa evolução. Estava me sentindo rico. Pagava o aluguel, morava só e ainda sobrava 1235 dólares pra comer e beber.

Pra completar, Rosel tinha mais dois empregos. Um num edifício chamado Chabanel e outro num banco da Caisse Populaire Desjardins, na mesma rua onde morávamos. Um pagava 800 dólares por mês e outro pagava 400 dólares. Rosel me propôs dividir com ele esses dois prédios também, mas só durou 2 meses e ele ficou sozinho de novo. Mas por 2 meses eu ganhei 2400 dólares por mês. Dava certo demais, pois o mestrado ainda não havia começado.

Como nada pode ser floreado, vamos à segunda grande merda em Montréal. A primeira foi a dos filipinos. Celso passa no prédio num domingo e chama pra tomar uma cerveja e jogar sinuca num lugar que ele gostava. Vamos simbora Rosel? Ele disse vamos, ninguém ganha pra mim na sinuca. E ninguém ganhou mesmo, o fela da puta é muito bom na sinuca. Mas o fato não foi esse. Foram muitas partidas e muitas cervejas. Contra todos que estavam lá. Eu com dinheiro, Rosel com dinheiro e Celso com dinheiro. Foi uma farra.

Celso tinha um Honda Civic Hatch preto, como eu já devo ter dito. Na hora da saída, vimos Celso bêbado, como nós estavamos também. Dissemos a ele que iríamos de metrô e dali ele fosse pra casa dele. Ele insistiu em nos deixar em casa, foi quase uma briga. “Não, moço, nós vamos de metrô”, dizia Rosel. Depois de tanta insistencia, fomos com Celso. Ele pegou a Highway e lá fomos nós, felizes nos 120km/h e tal. E Celso rindo e conversando. Eu vi que havia chegado ao fim pois tinha um semáforo e os carros estavam parados. E eu vendo que estávamos nos aproximando dos carros parados e nada de Celso diminuir. Quando não tinha mais jeito, eu gritei, “Fela da puta, os carros estão parados!!!”. Ele meteu os pés no freio, travou os pneus, mas não teve jeito. O Honda entrou todo, fiquei com os joelhos nos peitos. O casal da frente num Chevrolet Cavalier saiu do carro sem saber o que estava acontecendo. Destruiu os dois carros.

Não tardou muito, chegou a polícia. Perguntou quem era o motorista, Celso se identificou. Ele chamou Celso num canto e o outro policial veio nos entrevistar. Perguntou se ele tinha bebido, eu disse que não tinha visto. Perguntou o mesmo a Rosel e Rosel disse o mesmo. Perguntou se nós tínhamos bebido, eu disse que sim e Rosel também, mas que isso não tinha relevância porque estavamos de carona. Ele disse não importa, andem aí nessa linha. A linha branca que tinha no meio da estrada.

Eu andei bem certinho, mas quando foi a vez de Rosel andar, parecia Charles Chaplin, desequilibrado, quase caindo. Eu caí na gargalhada, o que irritou profundamente o policial. Ele disse, “Tá vendo ali aquele sinal? Vocês dois vão embora, peguem o metrô e vão pras suas casas. O amigo de vocês vai ficar aqui, ele vai com o carro do guincho”. E assim fizemos.

Wednesday, February 8, 2017

Primeira mudança – 18

Pra completar, nos dias que tinha pouco trabalho, eu não era escalado e ficava em casa. Ligava pra Rosel, o bom baiano de Anajé e íamos bater papo e circular pela cidade, batendo fotos e tomando uma cerveja aqui e outra acolá. Numa dessas, ele perguntou como estava na fábrica. Ele tinha trauma da fábrica, pois o local não tem aquecimento e nem ar-condicionado e numa dessas coisas da vida, Rosel um sujeito “delgado”, como os hispanos o chamavam, pegou uma pneumonia e quase que ia dessa pra melhor.

Eu disse que a fábrica era uma merda e pior ainda era o salário. Ele disse então que iria falar com seu patrão, um outro peruano, chamado Luiz Moralez. Este senhor, o Moralez, era um ex-policial fugido por problemas com outros policiais corruptos, segundo ele. Pediu refúgio no Canadá, colocou uma empresa terceirada de serviços e Rosel arranjou emprego com ele. Ele pegava os contratos dele com um grego chamado George. Luiz andava numa Hilux cabine única, toda fudida e em umas vans mais fudidas ainda. O grego andava num Porshe e só andava de jaqueta de couro. Luiz então prometeu a Rosel que iria ver o que arranjava pra mim.

Nesse meio tempo, eu gastava meus dias indo pra fábrica das 8 às 4 da tarde e quando chegava, ainda ia juntar papelada pra dar entrada no processo de aplicação do mestrado. Traduções, certificações, cartas de recomendação, e todo o lereado. Foi um tempo pauleira. E pegue cerveja. Não estava juntando quase nada. Gastando quase todo nesse processo e nas bebedeiras. Ia morto pra fábrica no dia seguinte.

Foi então que quase simultaneamente, dois fatos mudaram o curso do meu caminho. Rosel ligou pra casa de Celso e deixou uma mensagem na secretária eletrônica dizendo que um cara que trabalhava pra Luiz no prédio do Ministério do Trabalho do Quebec estava saindo de férias, se eu queria substituí-lo e conforme fosse, Luiz me daria um sub-contrato ou coisa assim. Fiquei de dar a resposta à noite. Mas no meio do expediente da fábrica, eu vinha distraído pra pegar uma pilha de livros em uma mesa, quando um hispano grita e me empurra. Ato contínuo, a guilhotina que era uma máquina desce. Não sei direito o que eu ia perder, provavelmente os dedos todos ou as maos.

Fiquei em estado de choque o resto do dia. Nesse dia, o árabe filho da puta veio me pagar, rindo. Eu pensei esse viado tá rindo de que? Liguei pra Rosel e deixei uma mensagem na secretária eletrônica dele. Nunca mais coloquei os pés na fábrica. O ultimo pagamento o árabe entregou pra Celso, que me passou depois. Nesse mesmo dia, puto da vida, fui pra casa de metrô pois Celso havia saído mais cedo. Chegando lá, já estava um frio grande, e eu estava com muita fome. Vi a luz do quarto acesa. Toquei na campainha e nada de Celso abrir. Depois de uns 15 minutos, ele sai dizendo que eu esperasse no metrô pois ele estava com uma jovem lá dentro e que depois ele me chamava lá. Esperei mais ou menos uma hora e decidi ali, vou me mudar.

No dia seguinte já não fui pra fábrica confiando que ia dar certo com Luiz Morales. Fui ate o prédio de Rosel, no Boulevard Decarie, 3433, perto da Sherbrook. Lá encontrei com André Boulais, o proprietário e ele me disse que o apartamento 01 estava vagando. Fechei o contrato com ele ali mesmo. O aluguel, lembro até hoje, era 365 dólares mensais, com energia e água inclusos. Eu pagaria por fora somente telefone e lavanderia, essa com 4 moedas de 25 centavos, no basement do prédio. A internet era gratuita com uma empresa terrível chamada Net Zero, que fornecia internet gratuita mas que a todo momento ficavam aparecendo telas de anúncios. Dentro do apartamento já tinha uma TV de 14 polegadas, cama, sofá, cadeiras e material de cozinha completo. Ah, e uma varanda que dava pra Decarie. O código de entrada do apartamento era #1945, ano de nascimento de André. Celso me ajudou a levar as coisas e ali tinha meu primeiro lar.

Wednesday, February 1, 2017

O retorno – 17

Então ele me deixou na casa dele e rumou pra fábrica. Fiquei ali o dia inteiro tentando dormir e sem conseguir direito. Era muita coisa que tinha pra organizar até começar a relaxar meus ossos. Fui dar uma volta nas ruas do bairro naquela tarde de setembro. Ficava pensando no meu pai que não quis ir no aeroporto. Um sentimento de culpa de deixar pra trás aquele que nunca havia me deixado. Mas era meu destino, eu tinha que aceitar.

Fui pra estação Rosemont, peguei um metrô e circulei sem ter pra onde ir. Na volta, desci na estação Beaubien. Andei de volta, já era perto das 17 horas. Celso chegou ao mesmo tempo que eu. E veio com uma novidade. Era feriado do dia do trabalho e ele disse que iriamos viajar com o time de futebol americano de Montréal, os Alouettes. Ele havia ganho um sorteio no restaurante La Cage Aux Sports, que dava direito à irmos para um jogo dos Alouettes contra os Tiger Cats, de Hamilton, na província de Ontário. Iriamos no mesmo trem que o time. E lá fomos nós no dia seguinte.

Rumamos pra La Gare Centrale de Montréal muito cedo. Deixamos o carro lá e já fomos tomando um vinho. Depois passamos pra cerveja e quando chegamos em Hamilton, sete horas depois, ninguém sabia mais nem onde era o céu e o chão. A música alta nos intervalos, tocando rock, e a Budweiser rolando solta no estádio, me fez pensar que seria vida mansa o tempo todo. Fui com a camisa da seleção brasileira e quando o jogador principal dos Alouettes estava sendo entrevistado pela TV após a vitória sobre o Tiger Cats, eu apareci no campo visual dele e ele me chamou!! Acabei aparecendo também! Voltamos com o time, já relaxados, vieram de um em um agradecer a cada passageiro pela torcida e por terem perdido tempo de ir até lá. Isso é o Canadá. Chegamos tarde da noite, rumamos pra casa, afinal, no outro dia, começaria o trabalho na famigerada fábrica.

Acordamos cedo para preparar o almoço pra levar pra fábrica. O sistema era bruto. A fabrica se chamava Edicible, de uns judeus e não era verdadeiramente uma fábrica. Era uma enorme gráfica, do tamanho de um quarteirão. Basicamente, eles imprimiam livros, revistas, panfletos e qualquer coisa que se colocasse em papel. E lá mesmo cortavam, e montavam os livros e tudo o mais. Muitas máquinas impressoras, muitas guilhotinas e muita separação.

Cheguei um pouco antes das oito horas da manhã e Celso me levou pra falar com um árabe. Vejam só, o dono da fábrica era judeu e quem arrumava a força laboral era um árabe, que tinha uma agência de emprego. Um exemplo como o dinheiro une esses povos tão raivosos uns dos outros. Ele me disse que meu salário seria 5 dólares por hora, mas que seria descontado a hora do almoço, assim, minha diária seria de 37.50 dólares, das 8 da manhã até as 4 da tarde. Fiz minhas contas, daria 750 dólares por mês. Não era muito, mas naquela época, dava pra se virar em Montréal com o básico.

Comecei o trabalho separando panfletos em montes e colocando uma liga. Depois fui montar umas caixas. Depois carregar uns livros. Fiz coisa pra cacete e quando olhei no relógio da fábrica, ainda era 8:45. O relógio parecia estar em slow motion. Finalmente deu 4 horas e Celso me disse que iria ter que ficar de plantão. Pediu a um grupo pra me deixar no metrô e fui pra casa. Não sabia se ria ou se chorava. Quando peguei no sono, chega Celso e Lúcio, aquele peruano, com uma caixa de cerveja. Puta que pariu, pensei, o rojão aqui é pesado. Logo chegam dois caras novos do trabalho e começam a tocar na guitarra de Celso e cantar, basicamente Red Hot Chili Peppers. E fui trabalhar morto no outro dia.

Basicamente, isso se repeteria pelas próximas três semanas. Quando chegava o sábado e o domingo, sempre íamos pra casa de um brasileiro ou recebíamos brasileiros na casa de Celso, e pegue mais cerveja. Pouco dormia ou descansava. Emagreci horrores, com pena de gastar dinheiro com comida.