Eu saí pela porta da
cozinha, que vivia sempre aberta e fui na área de serviço. Lá
estava Solange, nossa empregada, irmã de Baíca do América, filha
de Mira, lavadeira e Tico, jardineiro, que só tinha uma perna.
Peguei um copo, enchi de água no filtro de barro, com uma
torneirinha e Solange reclamou que já havia lavado o copo. Dei de
ombros e perguntei: “E daí? Ninguém mais vai beber água nesse
copo só porque você lavou?”. Ela me chamou de malcriado, mas
riu.
Encostada no muro estava
minha bicicleta, uma Caloi Cruiser azul. Subi na magrela e pedalei
até o portão, que com um golpe certeiro, fazia o mesmo se abrir.
Saí e com uma mão, já fechava de volta o portão, num gesto tão
repetido que se tornou mecânico. Desci a rua, era só pegar à
direita em cima da própria calçada. Como era uma ladeira, já pulei
“a rampa” pra calçada de Serejo. Parei no 1472 e gritei por
Bebeto. Uma voz lá de dentro, da copa, gritou: “Ele está
estudando”, era Dona Terezinha, sempre na esperança que Bebeto
fosse gente.
Decidi continuar meu
trajeto sozinho. Quebrei pro outro lado da Brigadeiro, lá estava
rolando uma partida de dominó, apostando coca-cola e pingo de ouro.
Pedro com uma ruma de revista de cinco anos de existência nas
prateleiras, somente pra dizer que aquilo era uma cigarreira e não
ser expulso dali. Na partida estavam Toinho Fofoqueiro, Cadinho,
Janilson e Mariano.
Esperavam de baia, Miro
Carioca, Hélio Barra-boa e Seu Heleno. Pedi a próxima. Pedro disse
que eu tinha que pagar cinco pingos de ouro atrasados. Falei que
papai tinha mandado recado que iria pagar hoje, ele acreditou. Mas
não gostei da cobrança do sujeito e fui embora, sob protestos dos
jogadores.
Continuei descendo a rua,
até a Clementino de Farias, onde dobrei à direita, sem antes não
esquecer de tocar na campainha da casa de Espigão, pai de Marco
coça-cu. Quando eu toquei e virei a rua, ele estava no outro portão,
brabo mais do que a porra. Tive que pular a calçada e ir pra rua,
depressa, senão levava uma bordoada.
Parei na casa do ilustre
Bob Motta e por cima do portão chamei por Pezão. Ele mandou entrar.
Cheguei na sala estava lá o belo, com uma camisa de Ricardo Motta
deputado estadual, vendo tv e limpando cêra do ouvido com o fecho
écler da almofada do sofá. Ele com uma e Bico com outra. Quem não
sabia não entendia o que eles fazias com a almofada colada no
ouvido. Nem água saiu ali e fui embora.
Dobrei a esquina e fui em
direção à casa de seu Praxedes. Queria mesmo ir na casa do doido
Kiko. Vilhelme estava chegando em casa, agoniado. Chegando lá,
estavam de papo na calçada, Kiko, Ismael dos relógios, o nêgo
Luisinho e Tolête, mais conhecido como Cuíca, com a sua motoca de
apelido independência.
Como ali todo mundo era
muito sabido, não me demorei e segui na Tarcísio Galvão em direção
à Lagoa dos Jacarés. Antes de chegar na Brigadeiro, escutei um
apito mandando eu parar. Era Seu Djesum, controlando o trânsito do
cruzamento, para evitar acidentes. Perguntei sobre a guerra, ele me
disse estar com a dispensa cheia, nunca se sabe quanto tempo a guerra
vai durar!!
Subi a rua e entrei na
Abelardo Calafange. Derrubei o lixo da casa de Cagumelo, sem querer,
com a perna esticada. Ele estava saindo pelo portão, ficou puto da
vida, e ainda quis correr atrás de mim, mas eu já estava longe.
Aproveitei a subi a rua em direção à casa de Rodrigo Escóssia.
Parei em Medeiros, onde meu pai tinha conta.
Enjoado como sempre,
Medeiros não permitia ninguém sem camisa no seu estabelecimento.
Enquanto eu tomava um refrigerante, chega Miro Carioca, que se cansou
de esperar,sua vez no Dominó. Estava no seu Baby Vermelho e decide
comprar algumas coisas em Medeiros. Assisto a cena, Medeiros
expulsando Miro de lá e Miro gritando, chamando Medeiros de “Manja
rola”.
Decidi sair de lá, pois
Miro estava perguntando minha opinião e eu não queria confusão.
Passei ali por Navega, ele todo ensacado e voltei pela rua do Chefão.
Encontrei com Chibatão, sempre passeando por ali, passei por Junior
Cavalo e me deparo com Carlinho Maldiçao sentado na calçada,
juntamente com Juninho de Guia, Rodela e Juruna tocando uma viola.
Comi duas coxinhas em Dona Nesinha, terminei no mesmo momento que
chegava Teté e Alex.
Saí, passei em Borginha
e perguntei por Alberto, que tava me devendo o dinheiro de um
periquito australiano que vendi a ele. Fui lá por cima e entro na
rua de Canindé Frutuoso e lá vinha Buana Jones andando com a farda
da ETFRN. Ele e Alf. Sigo até o morro e me deparo com o grande astro
de Morro Branco, Josimaikel, tocando Belchior naquela hora.
Enrolo a rua e quem eu
vejo? Pastel, pedindo pra eu mudar a nota dele do boletim na
impressora de papai, senão a surra dele ia ser grande. E dizendo e
rindo: “Não uso camisa branca e cinto de segurança, não sou
bacalhau!!!”.
Decido visitar Bolo e
quando chego por lá, A fera Apolo estava solta. Hesito, mas Bolo,
que consertava uma prancha de surf e construía uma tábua de morro
ao mesmo tempo, prende Apolo. Piolho chega na conversa com duas
lagartixas com o bucho aberto por ele.
Pouco antes de voltar pra
casa, encontro na esquina uma reunião de gênios. Ronaldo Tesourão,
Júlio, Zápata e Davi, numa conversa animada, sobre xadrez. Júlio
não falava muito. Quando volto pra descer a ladeira, quase sou
atropelado por Terêncio, Marcelo Mamão e Paulo Grêmio, cada qual
numa moto de cross.
Chego em casa à tempo de
abrir o portão pra papai que chegava do trabalho. Avistei Zé,
Pentelho de Urubu e De Assis nas calçadas. Papai desligou o carro, e
como sempre veio me dar um beijo. Cheiro de cigarro, barba que
arranhava, mas um abraço e um sorriso sem iguais.
Entro em casa, Fábio
assiste a um episódio de Chips, dizendo Ëu sou Ponchirelo, vocé é
John”. Fernanda no colo de Mamãe, que diz seu leite com chocolate
e hamburguer estão prontos. Copão verde da Tupperware, que tinha
uma tampinha pra beber.
Um barulho chato,
insistente e quando me dou conta, é um smartphone berrando no meu
ouvido. Um frio da moléstia na cama e a pressa de tomar banho e
correr, com a certeza de que talvez eu tenha tido a infância e
adolescência mais feliz do mundo.
Fabiano Holanda,
Charleston, 5 de fevereiro de 2018.
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