Wednesday, August 10, 2016

Lata de lixo - 1

Acredito que setenta por cento do que li nos últimos 20 anos foram biografias. Das mais variadas, gente de esporte, música, gestão, medicina, filosofia e por aí vai. Na minha vida inteira, nunca fui leitor de ficção. A vida real me fascina mais. Como dizia Belchior, a minha alucinação é suportar o dia a dia e meu delírio é a experiência com coisas reais.

O sujeito mais esperto irá perguntar: “E você acredita mesmo que existe realidade nessas biografias?”. Bem, concordo que a maioria delas é repintada com uma tinta mais bonita, aparadas as histórias mais escabrosas, consertados erros e enaltecidas muitas vezes decisões que foram feitas por sorte e elegem o biografado à guru e visionário, quando muitas vezes ele somente estava na hora certa e no lugar certo. Mas, mesmo assim, elas se aproximam muito mais da realidade do que uma ficção, que pretende imitar a realidade com suas personagens e nomes que se parecidos com a realidade, são mera coincidência.

Isso é uma discussão que não estou interessado em entrar no momento, o fato é que eu prefiro as biografias e se eu fosse contar minha história, o faria usando da mais pura sinceridade, mostrando onde errei e onde acertei, para que o leitor pudesse aprender com minha experiência de vida. O espertão irá falar também: “Quem és tu pra fazer uma biografia?”. Eu sou uma pessoa e acho que cada pessoa tem uma história de vida interessante, caso tenha aprendido com a vida. Um idiota pode até ter tido uma história interessante, mas nem ele sabe disso.

No curso de mestrado, já no último trimestre, fiz uma disciplina com o professor francês Alain Chanlat, chamada Ciências Humanas. Nessa disciplina, digna de um verdadeiro mestre, ele traçava um histórico de toda a existência humana, englobando os tópicos a seguir, um pra cada aula: genética, o cérebro, os reflexos condicionados e nervosos, a etimologia, a linguagem, o desenvolvimento neuropsicológico do bebê, a inteligencia, a afetividade, a socialização e as relações interpessoais.

Após cada aula, tínhamos que levar uma resenha sobre o que você aprendeu, antes de começar a aula seguinte. No final do trimestre, tínhamos que fazer um trabalho, com um fio condutor de todas essas aulas, além das nossas impressões pessoais. Passei uma semana fazendo este bendito trabalho, nas horas que dava, dormindo duas horas por dia, pois trabalhava para poder pagar meus estudos e viver. Li, reli, li mais uma vez, refiz umas cinquenta vezes. Pediu cerca de 15 páginas. Chegado o dia, entreguei. Mais uma semana para o resultado. O resultado seria dado em uma entrevista com ele, individualmente, no escritório dele, na universidade.

Logo que entrei, ele estava sentado, de paletó e sua inconfundível barba branca, somente com pelos no queixo, sem nada no bigode. Deu boa tarde e me mandou sentar. Fabiano, ele disse, está aqui o seu trabalho. Nada brilhante, nada sem nexo, trata-se de um trabalho mediano, que já recebi mil deles. A sua nota será um “A minus”, você discorda dela? Quis saber o mestre Chanlat. Eu, de certa forma aliviado, disse que não, que concordava com essa nota. Ele disse então estamos acertados, rasgou o trabalho e colocou na lata de lixo.

Ele disse que queria escutar minha história de vida. O que tinha feito eu sair do meu país e ir fazer mestrado no Canadá, que era isso que o interessava. O assunto do trabalho ele já sabia de cor e salteado. Que eu contasse tudo, ele teria uma hora pra ouvir. Ele escutava de olhos fechados, eu pensava que estava dormindo. Falei por muito tempo sobre o que pensava, sobre o que me fez ir pra lá, como fazia pra pagar a universidade, apartamento, comida, como eram meus pais, minha infância, família, tudo. Quando parei ele fez perguntas e obervações interessantes sobre o que tinha ouvido naquela narrativa, em que eu relatava a vida de um nordestino falando em francês.

No comments:

Post a Comment